- Não, estou longe de estar bem - eu disse - me desculpa por te decepcionar, mas é o que fazemos agora, decepcionamos os outros, somos insuficientes, odiados, ignorados, também falamos muito palavrão, choramos sem motivo, nos mutilamos porque isso nos faz bem entre outras coisas horríveis.
- Palavrão? Mas isso é feio e Deus não gosta de pessoas que falam. - Ele falou seriamente, me olhando nos olhos.
- Bom, olha só, nós não nos importamos mais com isso - Expliquei - Pra falar a verdade, as vezes penso que ele não existe, ou realmente não se importa conosco.
- Nossa - Decepção tomou conta da sua expressão - Como tá nossa mãe? Nosso pai? e a nossa irmã?
- Bom, a mãe tá legal, lidando com muita coisa mas ela é forte, você sabe - Falei - nosso pai, bem, não está mais conosco, perdemos ele a 3 anos atrás.
Ele começou a chorar, fiquei sem reação, acho que deveria dizer que tudo ficaria tudo bem e abraçar ele, mas mal conseguia me mover.
- A nossa irmã, agora a gente odeia ela, eu acho - Eu disse olhando para o chão - Brigamos sempre, ela vive gritando, diz que somos louco, doentes, não é muito legal.
- Mas ela me ama, ela nunca falaria isso!
- tu é muito novo pra entender, amor é psicológico, acaba muito rápido. - Expliquei - Você vai se acostumar, parar de sentir, só espera pelos 15 anos, é onde começamos a cair. Nossa alma começou a morrer aos poucos, cada corte, cada gota de sangue derramada, nos mudou um pouco e hoje somos isso.
- Mas eu não quero ser isso!
- Bom, ninguém quer.
- Como eu posso mudar isso?
- Adivinha? você não pode! Olha isso, - mostrei o meu braço pra ele - temos várias cicatrizes, lembranças de que não valemos a pena. Ninguém pode nos ajudar.
- PARA! - Ele gritou.
- Olha, me desculpa por ser o que sou. Mas me diz, o que tá acontecendo?
- Você não lembra? Você tomou todos os comprimidos que o psicólogo te receitou, de uma vez só - Ele disse rindo - Você deve estar desmaiado, talvez morto. Espero que nossa mãe tenha nos encontrado a tempo!
Um silêncio tomou conta do quarto, percebi que estava arrepiado.
- Qual a tua idade? - perguntei - Você já aprendeu a andar de bicicleta?
- Não, vou aprender amanhã - Ele respondeu - O Allan vai me ensinar!
- Uma dica? ele é nosso irmão mas não é nada confiável - Falei rindo - Ele vai parar de te segurar,você vai bater de frente com um muro de cimento, e, puta que pariu, vai doer pra caralho!
- Não fala isso, essa palavra, você sabe, é feia.
- Eu não me importo.
- Mas deveria!
Senti minha cabeça doer e fechei os olhos, e quando os abri, eu estava caído ao lado de várias embalagens de remédios, minha mãe me balançava e chorava, escutei as sirenes da ambulância se aproximando da casa, e então voltei a dormir. Bom, eu não morri.